O espectro do sonho - (e a vertigem de acordar)Páginas

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

NESSE DIA MUITAS COISAS FORAM VISTAS, MAS QUASE TODAS FORAM ESQUECIDAS











Uma vez atingida a meta de contemplar as horas misteriosas, e nada restasse; partimos para o refúgio das ruas. Nas profundezas da rua, tememos o medo. E como o medo crescesse e seu peso fosse insuportável, estacamos no sono. Acordar é uma conquista amarelada de sol.
Cão morto que um tiro de piedade matou. As horas são infinitas de humanidade.
É preciso ver o homem em tudo. Quando Zeus caiu das alturas, os homens teceram uma mortalha e cobriram-no para que o frio do mundo não o acordasse, e nas praças ergueram monumentos de bronze em homenagem a Zeus caído segurando em suas mãos as horas mais misteriosas que o mundo temeu.
As horas, recortadas por minutos inatingíveis, são depostas no fim do dia...







Lá fora, a rua imóvel conduz o dia. E os homens repassam suas lembranças nas sombras das casas frias e amarelas. Os homens estão isolados na retidão da rua. Seus antebraços se contorcem e se estiram quando o sol os atinge. E na janela, alguém, debruçado no silêncio de recordações mudas, pereceu de saudade.
Os homens não rezam; refugiam-se no silêncio de convicções alquebradas e se dobram quando o vento os alcança. Parte de suas crenças, definhadas, esperam um consolador. Envolvidos pelas nuvens de um céu cinza, eles esperam... Procissão. A calma é um falso abrigo para os que têm, na boca nula, a língua calcinada. Seus sorrisos são calados. E outros ainda, colocados no limite da vida, têm suas línguas mergulhadas num abismo úmido e cheio de olhares oblíquos. Confessam pecados de dia, de noite não sonham.
Alguns homens cantam em quartos miseráveis e, de quando em quando, precisam ser consolados por aves roucas que pousam em suas cidadelas decaídas, tremulamente, seus olhos se perdem num ponto vazio do ar que respiram. Não são viajantes; são hospedeiros do tédio.
Lá fora, já e ainda, a rua conduz o dia. E homens endireitados em sua própria sombra, repetem suas crenças tardias. E no esquecimento se refugiam...







O dia, morto em minguadas aventuras tediosas, deixou na rua larga, sob a sombra de edifícios apagados, sua nulidade estampada na face dos habitantes ali abrigados... Não há o que contemplar nesses dias obscuros, perdidos; vazios em si mesmos... E no fecho desse dia morno, enquanto a noite recompôs suas sombras, outros seres ali, silenciosos em seus pesares, respiraram suas agonias em viver. E em crenças absurdamente construídas em dogmas de aço, o dia foi finalmente deposto no vazio, sistematicamente inalado por todos que por ali passaram. E eu, mirando a última luz visível, ainda, no poente morrediço, segui pesaroso, com os olhos fixos no nada da noite crescente... estrelas perdidas na luz frouxa que emitem... No jardim baldio, sem cuidado, flores brotam...redenção... redenção... A mão que sustenta meu estro, no escuro e na perda maior... redenção... redenção...








Os deuses da antiguidade estão mortos. No meu jardim de pedras, os vestígios da sua dureza, relembram os deuses que, perecidos, nem flores são...Pedras do meu amor...
A luz naufraga na escuridão. Num vão aberto na memória tudo está esquecido...
Visão fugitiva que contempla os deuses, carcomidos e amordaçados, adormecidos num resto de lembrança que se dilui no esquecimento...Chove. No jardim de pedras, chove...




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