O espectro do sonho - (e a vertigem de acordar)Páginas

IMAGENS


A janela geométrica se abre para o mistério da rua. As portas retangulares e anunciadoras se abrem para as profundezas da sala repleta de alucinações fantasmagóricas. As paredes confessam pecados sensuais entre a razão e a alucinação. Sobre a mesa da sala repousa um livro de poesias inacabadas. Morte...




A aurora e sua decrepitude avançavam no largo do dia. E os homens partiram deixando o passado para trás como um cadáver hirto de esquecimento. Tinham a face desfigurada e a língua calcinada. A face aniquilada da memória perdida. Os homens e suas convicções tardias. Cães agonizantes na praça sem destino. Atrás de paredes veladas alguém chorou uma perda, e nos jornais uma noticia triste que ninguém leu. E na madrugada o vento assoviou canções de desespero. O vento e sua disparidade; lambeu telhados com sua fúria, teceu conjecturas escuras sobre a noite. Versos irrepetíveis; uma ave no céu; a terra com sombras desenhadas da noite. Escuro  carvão de riscar traços de agonia.

Os homens e suas memórias fugitivas; durante o dia inútil ergueram paredes de ilusão; na cavalgadura da noite cavalgaram sonhos terríveis a ponto de se julgarem acordados.

Durante a longa e lenta noite as sombras projetaram desenhos geométricos que se perderam com o raiar de uma nova aurora, como se fosse uma perda irreparável, um esquecimento maior, os homens partiram definitivamente deixando para trás um vazio absoluto e irrevogável que se arrastou por todo tempo até não restar nada. Os dias não tornaram a nascer com sol. O esquecimento selado na fronte de todos os dias sem sol...


Caminhando [...] o dia... A rua banhada de sol. E as tragédias que o dia oferece. Os peixes, no mercado, nos fitam com olhares de morte. Do canto de salas escuras alguém nos observa e seu olhar nos acompanha até o fim do dia. Uma eterna consternação.

A ternura de peixes adormecidos na morte; seus olhos permanecem atentos enquanto o frio do gelo petrifica-os até serem consumidos em lares famintos. E o sol ganhou o centro do céu e iluminou praças, edifícios e favelas. A multidão de luzes e sombras que o dia de sol descreve projetam desenhos geométricos no asfalto negro. Ali no mercado, os peixes num sonho de morte congelada, repassam suas lembranças do mar agitado e profundo; não fecham os olhos por sonharem em de novo ver o mar. Eles esperam. Na rua banhada de sol o mar é uma ausência salgada. Uma essa espera de alcançar o mar; o mar e sua plenitude de grandeza e de mistério. Ondas [...] a face do dia. A rua de sol é um labirinto de luz amarelada que se perde na extensão dos olhos que nos contemplam.


lâmpadas incandescentes que ofuscam as humanidades que teimam em mirar o filamento em chama. A fatalidade das horas diárias constrói minutos inaccessíveis em pontos vazios da alma.

[...] e há deuses artesãos na nossa memória. Estamos hirtos na praia, contemplamos navios na distância fugitiva de tudo que a razão oprime. Há um nada em tudo que nos pertence. Solidão.

[...] e a nossa morte cresce.

Aves banhadas nas luzes das auroras todas;  quimeras que o sonho empilha em torres coloridas que se estendem além do mar de indagações. [...] a aurora é um ponto eqüidistante entre a luz e a treva espessa. Promessa definitiva. [...] e há a súbita visão do cadáver que seremos. Os cães nos farejam com amizade. É tudo... Brevidade dos fatos reais que se estendem além da tormenta que oculta um céu baixo e sem azul da realidade que nos consome como filamentos incandescentes de lâmpadas que se apagam em versos desfeitos.

[...] tudo é humano. Saudade. O mar é perfeito; barcos da ilusão.

[...] olhos que esculpem a luz do sol em rocha de vontade dura e teia leve de fascinação. Esculturas de anjos iluminados...

As formas que o pensamento desenha são folhas secas; sombras que se tornam pássaros vivos no emaranhado de fios que a alma tece na vastidão derradeira do acordar.

Relógio da alma. Templos. Pássaros de luz.

E a grande batalha começou... Aves, navios do céu, e a chave do silêncio no pio triste e nas asas frias que o tempo encerra.
 

O ruído do dia humano provém do aniquilamento. Os muros que separam quintais de abandono e no pavimento de terra em que brotam as flores  do esquecimento. As mães rezam terços em contas de dor. Usam a voz como trombetas que gritam silêncios antigos de compaixão.

As casas se perdem na perspectiva geométrica da rua. [...] as rosas são de um vermelho consolador. O jardim é eterno. À noite, no silêncio das casas frias, pode-se ouvir o choro mudo das mães que não colhem flores. Orvalho seco que banha as madrugadas todas... Ventos do apocalipse, ruídos do dia humano. Quintais da dor...

O dia cavalga a catástrofe na praça de árvores efêmeras. No centro da praça a igreja está inerte. O dia levanta um sol de luz impronunciável, ilumina a praça, a casa, a fonte esquecida. A fonte contempla sua sombra, ela sabe. Sua alma lembra sonhos antigos de morrer na praça. O vento traz uma folha seca, uma lembrança, uma sombra perpetuada na sombra da fonte. E num reino distante alguém pereceu de saudade. A igreja tem uma sombra piedosa. Figuras geométricas no pavimento da praça...

O vento , brando, é uma brisa que provoca o esquecimento. Sombras de uma espera interminável. Tudo é uma espera que cansa. O esquecimento é inevitável. O sol rodou, rodou no centro da praça cansada de esperar. As sombras foram se alongando e miudamente se perderam no fim da praça que um grande nada de sombras geométricas que se perdem na catástrofe que o dia cavalga na praça de árvores efêmeras de uma cidade qualquer. Figuras que o sol esquece de aquecer.


 Portas de luz se abrem sobre o campo de pães brancos e dessa terra se erguem corpos coloridos, ou cadáveres metafísicos de arlequins tristes que se deitam à sombra de árvores e esperam que novas torres se ergam no centro do campo que é um sonho.

No principio da noite, mulheres caminham em circulo carregando flores arrancadas de jardins baldios. Fazem brilhar seu destino e suas mãos de cristal. Roupas de couro de leopardo; asas de borboletas multicoloridas, almas que se evaporam num ar rarefeito.

Nos caminhos do tempo e do destino a chuva revela, nas lajes de mármore, a essência da sede que atormenta os insetos negros da noite. Os insetos caem na batalha mortal contra as vidraças intransponíveis.

A procissão cresce. Estios que provocam o esquecimento secular. Ventos que varrem o campo de pães brancos. Os arlequins estão mortos para sempre. São mortos , da noite, os fachos. Mulheres desnudadas da noite se calam. O dia nasce.

Enfim, o campo é um sonho e se parte em dois: sombra e luz...


 



[...] e a imagem das divindades. No leito do rio de caos e catástrofes as pedras se agrupam no fundo das águas leitosas. Pedra. Você olha seu interior duro e escuro e das profundezas vozes te chamam. A felicidade está em seu interior desconhecido. Fora da água tudo provoca uma curiosa desolação seca. É preciso chorar nossa hora diária.  Repousar nas luzes fantasmagóricas que penetram na fina lâmina d’água. Que luz! A alma se seca ao sol. O sol e sua afirmação. Quem te esqueceu nessa hora amarela? As janelas de arcadas ocultam olhares de consternação. Mulheres de seios desnudados. Guardam pérolas que colhem  nos rios de água limpa e cristalina. Á noite confessam sonhos de sair de suas conchas azuis. As coisas se perdem numa noite escura... Trovões ecoam no firmamento de brilhos antigos. [...] as divindades são azuis. As horas são construídas em paredes de pedra. As divindades são pedras azuis que as horas esqueceram de construir.

Nexo das horas inúteis.

O silêncio é uma esperança perdida, e em algum lugar está um pássaro que não se pode ver. Alucinações que provocam febre no olho ferido. Quedas d’água da nostalgia. [...] e as imagens azuis das divindades se vão miudamente recompondo nas profundezas  das águas  do rio. [...] e as pedras  proclamam sua vitória.



Como mãos unidas, postas em prece, os livros rezam na prateleira. Meditação sobre as coisas guardadas na sala de leitura onde os livros dormem. O pó nas folhas. Paredes que a solidão constrói. O olhar das coisas mortas. Desterro. Ausência.