O espectro do sonho - (e a vertigem de acordar)Páginas

quarta-feira, 24 de junho de 2020

A VIBRAÇÃO DA COR (a poesia pintada)




VISITAS NOTURNAS

A noite estava feita quando as visitas chegaram. Tomaram chá, olharam minhas paredes.
Procuravam manchas na textura gasta, esquecida. Examinaram, detidos nas reentrâncias, atentos à procura de odores e marcas do tempo. O mofo, o sujo, a lembrança guardada, vestígios de dores insistentes e pegajosas. Aquelas que se incrustaram no fundo do abismo mais profundo das nossas paredes. Enfermidades da tinta envelhecida, da cal amarelada. EGO. Ainda na busca inquieta, vasculhavam a procura de pontos de luz e claridade. Saberes; experiencias; virtudes e contentamentos. Estertores aquietados, ou calmarias pacificadas. Tristezas e alegrias. Tinta e pó. Falaram, falamos, tomaram o chá servido, olharam, ainda, minhas paredes (minhas paredes repletas de quadros), quadros por toda parte, no chão, atrás do móvel, empilhados num canto, alguns dentro de mim, de nós; ninguém os quer. São de gosto obsoleto, degradado, marrons, sem cores quentes, mas tão artísticos e reveladores. Expressam muito. A arte da poesia pintada. Memórias pictóricas dos acúmulos. Alguns tão doces e agradáveis de se olhar, alguns, ou todos até, adocicados ao exagero. Injustiçados e relegados ao porão.
As visitas sorvem o chá quente, doce, vermelho, muito vermelho. Deito, na xícara, o chá; a xícara e sua sombra. ANSIEDADE. Reviro pinturas, desenhos, datas, vibrações de cor e suas mutações. O reino da noite é dos poetas. O reino do dia é dos alegres e vivazes. O reino da angústia, porém, pertence à todos; e se engolfa nas entranhas de tudo.
As pessoas que chegaram no largo da noite, cansaram-se, foram-se, mas ai, levaram pinturas raras; deixaram moedas que rolaram porta a fora. DILEMA. Foi-se, foram-se... no móvel, ficaram as vazias xícaras, no meu olho uma xícara vazia e sua sombra, uma sombra tênue e fugaz que foi esvaindo-se aos poucos ante meu olhar atento até restar somente a xícara. A xícara vazia, imóvel, sem sombra, sem chá, sem cor, sem móvel pra sustento, sem esperança, sem nada. Sem cores na parede extática, imóvel e esgarçada de tanto esperar. E esperou... E esperamos... 

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