O espectro do sonho - (e a vertigem de acordar)Páginas

sexta-feira, 17 de junho de 2011

ANTI-PREFÁCIO

E quando o sol, posto a meio-céu, tardasse a iluminar o dia nulo em si mesmo e a meia claridade fosse um sinal de tempo tardio. E a rua morta não oferecesse um anseio mínimo de abrigo e contentamento. E fantasmas noturnos despertassem e ditassem suas crenças nauseadas, renascidas e trêmulas, na praça de meio-escuro, meio-claro de carnavais mortos, como se fosse noite em dia e tudo pesasse sob a luz frouxa de um sol decadente, a grande batalha começou... A fome cresceu e deitamos a boca no prato de concreto e nosso beijo se feriu... Fendeu nossa alma... E corremos aos templos buscando um deus que não aviltasse nossa vontade, já e antes, frouxa e sem medida de fé duradoura, como se nossa fome fosse, sempre, a medida da nossa desdita...

O peito aberto das cidades é a catástrofe...

E como vacilássemos entre sono e vigília, na batalha, nosso sonho pereceu... E buscamos no mar, agitado e verde de sal, saciar nossa sede... Nossas entranhas arderam e clamamos por alívio erguendo nossa mão a um céu baixo e sem azul. O azul do nosso clamor... Desejo de estarmos sempre ao sol quente, banhando nosso estro... Quimera que a dor produz... E no fecho da nossa procura, estacamos inertes, perante nós mesmos... O sangue nos matadouros é nosso... Sangramos nossa dúvida em versos indizíveis...

No princípio do tempo, ocultamo-nos no escuro de tetos caídos; ruínas do nosso passado que a descrença vertiginosa das humanidades que nos precederam como legado nesse chão que hoje verte o vômito antigo de dores cruentas que elas próprias viveram.

E quando o céu fendeu e em nós soprou o hálito frio do castigo e da miséria, nossa alma confrangida e aniquilada buscou  a construção de castelos de cristal erguidos no interior das nossas esperanças ultimas e no beijo quente de amantes voluptuosas e sem pudor, e gritamos silenciosos “dá-me teus seios e me ama até a morte e a ressurreição de tudo que for vida, ou qualquer vestígio de respiro, ainda que flébil, em nós, o eco do amor se faça”.

Mas o cristal dessa construção tornou-se pedra e a seu peso se partiu...

Nenhum ai é mais agudo que a desesperança... Nenhuma rocha sustenta a casa da descrença... O dia se pôs, assim, insustentável...

Nuvens, como manchas esfumadas, cobriram o sol posto a meio-céu e tudo ruiu num desenho de poucos traços num poente distante e sombrio, que nós, eu e meu olho, ficamos mirando até não restar nada...

[...] embriagar-se da água que brota das pedras.

Signos dos dias mortos. Premonições...

E tudo finda. Mulheres nuas que se acendem como lâmpadas de desejo e se apagam irremediavelmente no fim da luz.


4 comentários:

  1. Cara, gostei muito das figuras surreais e parece que o jeito de vc escrever ser também muito surreal.
    Será que vc está inaugurando um novo estilo de Escrita?
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    1. Anti-prefácio

      “... E no fecho da nossa procura, estacamos inertes, perante nós mesmos..."

      Minhas ínfimas alusões

      Inconciliáveis dualidades, que sem o saber buscam um fim em si mesmas. Vida e morte, corpo e alma, homem e deus. Assim, somos fragmentos do todo, que desconhecemos existir, e existindo desconhecemos que somos... Tudo o que há. Quão insustentáveis são as lágrimas que derramamos sobre o fim do que não sabemos.Mas o que sobra dessas horas íntimas em que, em vão, pensamos na morte, como a promessa de recomeço?

      Anti-prefácio

      “O sangue nos matadouros é nosso... Sangramos nossa dúvida em versos indizíveis...”
      “O dia se pôs, assim, insustentável...”

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    2. Caro Rubens Prata. Não faço nada de novo, apenas continuo cúmplice do surrealismo, por ver nesse movimento artístico a possibilidade de expressão da minha sensibilidade. imagens enigmáticas me fascinam. Visitei seu canal. Grato

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  2. Achei bonito e um pouco triste "...nossa alma confrangida e aniquilada buscou a construção de castelos de cristal..."

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