O espectro do sonho - (e a vertigem de acordar)Páginas

terça-feira, 7 de julho de 2020

O MAR E O PORTO (o pensamento navega na lembrança - e na saudade)





O MAR, O PORTO

A pele, num dia cinzento, não vale nada. O que conta, em qualquer tempo, são os olhos que podem ver o mar; o mar em sua grandeza.
Na rua central, alguém, desvalido, comeu um pão caído no chão. No dia seguinte não houve pão. O vento não soprou cabelos. Solidão; fome... A insustentável fome do mundo. Espectro ou vivente têm seus momentos de lucidez. Um e outro, quando chove, abrigam-se em suas lembranças e adormecem juntos, aninhados em folhas de papel velho. O mar em sua grandeza azulada, esverdeada; não sei.
A cidade cai na noite, ergue-se com o sol do dia seguinte. Se não houver pão haverá pedras do pavimento de uma rua qualquer. Os homens estão ali, inertes.
Os pés, num dia cinzento, não valem nada. O que conta são as mãos que afagam e consolam. Num quarto, antigo e distante, alguém perdeu um pensamento. A solidão de estar só diante do lago manso e não ter na mente, versos para consolo; e quando o lago fica seco, nada resta... aí está o mistério... O barco esquecido no porto... O que antes navegava no lago ou no pavimento de cidadelas mudas, está posto na indiferença humana... um barco... um homem... um homem-barco esquecido no porto....
Ah! O mar e seu gigantismo. O porto é uma lembrança em que a saudade aporta. E o dia pendeu no entardecer...

quarta-feira, 24 de junho de 2020

A VIBRAÇÃO DA COR (a poesia pintada)




VISITAS NOTURNAS

A noite estava feita quando as visitas chegaram. Tomaram chá, olharam minhas paredes.
Procuravam manchas na textura gasta, esquecida. Examinaram, detidos nas reentrâncias, atentos à procura de odores e marcas do tempo. O mofo, o sujo, a lembrança guardada, vestígios de dores insistentes e pegajosas. Aquelas que se incrustaram no fundo do abismo mais profundo das nossas paredes. Enfermidades da tinta envelhecida, da cal amarelada. EGO. Ainda na busca inquieta, vasculhavam a procura de pontos de luz e claridade. Saberes; experiencias; virtudes e contentamentos. Estertores aquietados, ou calmarias pacificadas. Tristezas e alegrias. Tinta e pó. Falaram, falamos, tomaram o chá servido, olharam, ainda, minhas paredes (minhas paredes repletas de quadros), quadros por toda parte, no chão, atrás do móvel, empilhados num canto, alguns dentro de mim, de nós; ninguém os quer. São de gosto obsoleto, degradado, marrons, sem cores quentes, mas tão artísticos e reveladores. Expressam muito. A arte da poesia pintada. Memórias pictóricas dos acúmulos. Alguns tão doces e agradáveis de se olhar, alguns, ou todos até, adocicados ao exagero. Injustiçados e relegados ao porão.
As visitas sorvem o chá quente, doce, vermelho, muito vermelho. Deito, na xícara, o chá; a xícara e sua sombra. ANSIEDADE. Reviro pinturas, desenhos, datas, vibrações de cor e suas mutações. O reino da noite é dos poetas. O reino do dia é dos alegres e vivazes. O reino da angústia, porém, pertence à todos; e se engolfa nas entranhas de tudo.
As pessoas que chegaram no largo da noite, cansaram-se, foram-se, mas ai, levaram pinturas raras; deixaram moedas que rolaram porta a fora. DILEMA. Foi-se, foram-se... no móvel, ficaram as vazias xícaras, no meu olho uma xícara vazia e sua sombra, uma sombra tênue e fugaz que foi esvaindo-se aos poucos ante meu olhar atento até restar somente a xícara. A xícara vazia, imóvel, sem sombra, sem chá, sem cor, sem móvel pra sustento, sem esperança, sem nada. Sem cores na parede extática, imóvel e esgarçada de tanto esperar. E esperou... E esperamos... 

segunda-feira, 15 de junho de 2020

O ESPECTRO DO SONHO (e a vertigem de acordar)



A luz do Sol caminha pelo chão, iluminando casas, praças, florestas e pensamentos amolecidos pela lentidão do dia; e nessa manhã alguém afirmou que no fim do dia o cadáver do Sol seria engolido pela noite.
Hora derradeira.
Salas escuras.
O banquete será servido quando o relógio apontar a vigésima hora e a carne ainda estará crua e sem sabor.
Livros antigos.
A saudade não pode ser escrita, descrita, restrita.
Vento. Folhas arrancadas.
Folhas de arvores que se desnudam sem pudor.
Inocência verde.
À tarde, depois de construída a atiradeira, e a pedra ter sido arremessada, só restou implorar: “voa passarinho, voa, que não atiro mais pedras”. Ah! Impossível deter o inevitável, ele não voou... A lata que serviu de urna para o pássaro morto, enferrujou, apodreceu... A memória não enferruja, não se desfaz, mas, apodrece sozinha enquanto padece de morte o sol no fim do dia que agoniza.
A tarde e sua calma. A tarde e seu significado, e seu martírio, e seu enigma. Ela ama sua alma iluminada pelo sol.
Ela pertence à memória dos deuses que habitam o sempre.
O poente se avermelha de piedade.
[...] um pássaro morto é único.
Árvores antigas contemplam o feroz espetáculo de renúncia do sol que se ajoelha perante a noite soberba que se agiganta e abraça o sol com tamanho vigor e piedade que ele adormece indefeso para no dia seguinte se levantar majestoso. [...] o princípio do esquecimento se revela.

sábado, 6 de junho de 2020

A PREMONIÇÃO (ou a procura da memória de ontem)

Lá fora, a rua imóvel conduz o dia. E os homens repassam suas lembranças nas sombras das casas frias e amarelas. Os homens estão isolados na retidão da rua. Seus antebraços se contorcem e se estiram quando o sol os atinge. E na janela, alguém, debruçado no silêncio de recordações mudas, pereceu de saudade.
Os homens não rezam; refugiam-se no silêncio de convicções alquebradas e se dobram quando o vento os alcança. Parte de suas crenças, definhadas, esperam um consolador. Envolvidos pelas nuvens de um céu cinza, eles esperam... Procissão. A calma é um falso abrigo para os que têm, na boca nula, a língua calcinada. Seus sorrisos são calados. E outros ainda, colocados no limite da vida, têm suas línguas mergulhadas num abismo úmido e cheio de olhares oblíquos. Confessam pecados de dia, de noite não sonham.
Alguns homens cantam em quartos miseráveis e, de quando em quando, precisam ser consolados por aves roucas que pousam em suas cidadelas decaídas, tremulamente, seus olhos se perdem num ponto vazio do ar que respiram. Não são viajantes; são hospedeiros do tédio.

Lá fora, já e ainda, a rua conduz o dia. E homens endireitados em sua própria sombra, repetem suas crenças tardias. E no esquecimento se refugiam...


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O BERÇO E A VIDA ETERNA (e a significação mais oculta do amanhecer)







A matéria, densa. O colo, a mãe, a terra. Um minuto ínfimo de descanso no seio do chão, a terra; a terra que nos cobre. Breve contentamento. Silencio minha morte no teu ventre. Augusta candura. Desespero. Colo. Mãe. Terra de outros seres. As mulheres têm asas, mas, no seu vôo baixo se perdem. A pátria. Hoje o colo materno desfolha sua doçura. Breve açúcar de tinta branca.
Etéreo berço. Mãe, me ame até a morte e nesse tempo hostil, ainda, me ame sem termo. A terra das lembranças todas. Ventura. Fiz-me de terra, enfim vejo...a terra padece.
[...] sede. O desespero da sede.


domingo, 24 de novembro de 2019

OS ADVERSÁRIOS (e o brutal sentido do nada)








Os pássaros e sua incrível possibilidade de voar, ou então que vemos ali na praia sem Sol? Sempre às voltas com vôos ao céu azul e violáceo. Para voar é preciso uma exatidão absurdamente matemática, uma capacidade de ser leve, de reduzir a própria densidade corpórea. Liberdade de atingir os cumes, além do que podemos mensurar, sentir, esquecer. Onde estão as asas da floresta de pensamentos de ontem? Um instante de pesar...Um ai de desespero. A maré está baixa. Vamos navegar, ainda e já, que o vento, em breve, é vem chegando. 



sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O CÉU ESTRELADO (e o enigma entre tempo-espaço e distância)











O vento sopra a madrugada e seus minutos eternos... um só, esse pensamento de nulidade; frutos escuros da noite...
Navios distantes.
Contemplação de estrelas mortas.
E a tempestade chega...ocultos segredos da noite...
Silenciosas canoas ópticas à deriva nas águas da chuva. Silêncio eterno. Minutos geram horas na eternidade... Estrelas têm um brilho antigo...
Trovões ecoam na rua deserta, deuses despertam... os deuses e suas canções de ninar crianças divinas e alegres... Mães dobram-se sobre o berço dos recém-nascidos e a tempestade cessa... A noite prossegue. Cães ladram na distância, que é um ponto qualquer, que se perde na madrugada que o vento assola... Os minutos são eternos... os minutos e sua nulidade...